Revista Mística nº20

sexta-feira, 24 de agosto de 2012


Nemanja Matic: A força que vem dos Balcãs

Nascido nos escombros físicos, materiais e emocionais da Guerra dos Balcãs, Matic ergueu-se, conquistou o direito à felicidade e ofereceu orgulho à família.
A história do sérvio que brilha no meio-campo do Benfica.

Bilhete de identidade
NEMANJA MATIC
Nacionalidade: Sérvia (Sabac)
Idade: 23 anos* (01/08/1988)
Ídolo: Zinedine Zidane
Percurso: Chelsea, Vitesse e Benfica
Momento marcante: Estreia pela seleção principal sérvia em 2008


«Dici che il fiume/ Trova la via al mare/ E come il fiume/ Giungerai a me/ Oltre i confini/ E le terre assetate/ Dici che come il fiume/ Come il fiume.../ L'amore giungerà/ L'amore.../ E non so più pregare/ E nell'amore non so più sperare/ E quell'amore non so più aspettare.» [Dizes que o rio/ encontra o caminho para o mar/ e como o rio/ vens ter comigo/ para lá das fronteiras/ e das terras secas/ dizes que como um rio/ como um rio/ o amor chegará/ o amor/ e não sei mais como rezar/ e no amor não sei mais como ter esperança/ e nesse amor não sei como esperar mais”.]
Eram estas as palavras que implodiam no emocionado tenor Luciano Pavarotti quando, através de Miss Sarajevo, os U2 davam a conhecer ao mundo a esperança perdida aos olhos da guerra civil dos Balcãs. Existia a ilusão num amor que se pudesse restabelecer, apesar das diferenças de toda uma região, mas também a mágoa desse parecer um cenário impossível. As bombas caíam, matavam, desgastavam.
Desde a II Guerra Mundial que a Europa não via nada assim. Para os mais atentos, a denominada Guerra dos Balcãs decorreu ao longo de todo o século XX. A então Jugoslávia era um misto de tensões. Talvez muitos esperassem o capítulo final, com ponto de partida em 1991. Entre crimes de guerra, limpezas étnicas e guerras civis, muitos foram os culpados, apenas uma a vítima: o povo. Foram dez anos de horror.
A agora antiga Jugoslávia ainda tenta recuperar a confiança. As perturbações económicas e a constante instabilidade social tornaram-se imagens de arca no pós-guerra. As gerações nascidas no final do século passado vieram ao mundo pela porta pequena, aquela onde a realidade é chocante, as dificuldades agoniantes e os adultos seres de quem se desconfia.

Crescer… e, com sorte, viver
Mas em casa o amor é eterno. No aconchego da família existe a paz que nenhuma bomba é capaz de destruir. À prova de bala, esse sentimento entre pais e filhos. Entre irmãos. Nemanja Matic, nascido a 1 de agosto de 1988, pode ter crescido ao som de estilhaços, mas a principal recordação da infância e adolescência é o carinho familiar. Hoje, a realidade de uma Sérvia envolvida no conflito que marcou a Europa do final do século até já parece distante.
Matic tornou-se um futebolista que até representa as cores da bandeira nacional, marca presença de águia ao peito na principal prova de clubes da UEFA, enfim, é um digno representante sérvio no Sport Lisboa e Benfica. Os tiros deixaram de ser ouvir nos Balcãs.
Mas não se torna difícil encontrar na memória do jogador de futebol aquela criança que assistiu em direto e ao vivo, não pela televisão (como tantos nós), mas sim presencialmente, à violenta década de 90 na ex-Jugoslávia. “Nasci e cresci numa pequena cidade sérvia e a minha infância ficou marcada pela guerra, mas, acima de tudo, pelas fracas condições económicas decorrentes desse cenário. Eu tentava abstrair-me. Ia à escola e depois jogava à bola com os amigos. Tudo parecia estar bem. Mas quando chegava a casa caía na realidade e via as dificuldades que os meus pais tinham para nos providenciar uma vida minimamente equilibrada”, recorda dos tempos de Sabac.
“A guerra nem afetou assim tanto a minha cidade. A Croácia e a Bósnia foram as mais afetadas, como todos sabem. Mas recordo-me de que em 1999, quando a Sérvia foi bombardeada, vivi momentos difíceis. Nem podíamos ir à escola. Ainda hoje tenho dificuldades em pensar no assunto e em perceber como alguém, seja em que território for, pode tomar esse tipo de decisões. Por acaso não perdi nenhum familiar, mas muitos amigos meus não podem dizer o mesmo.”

A felicidade na Eslováquia
É notório o desconforto. Matic descobre no fundo dos olhos azuis um tom mais escuro, que revela alguma tristeza e desilusão. Mas é na família que o olhar ganha brilho e que os traços faciais se desmobilizam, dando lugar a uma expressão de nostalgia e felicidade. É que, apesar das já referidas dificuldades económicas, aqueles que o colocaram neste mundo eram os mesmo que tudo faziam para que crescesse feliz. O pai, herói do então pequeno Matic, era figura de renome na II Divisão jugoslava. “Ele diz que era melhor do que eu, mas não sei se hei de acreditar. Eu ainda vi alguns jogos, mas já estava no final da carreira. Não era a mesma coisa. No entanto, vi e revi centenas de vezes as cassetes de vídeo e os DVD dos jogos dele”, conta.
Mais tarde ou mais cedo, teria de seguir as pisadas do progenitor. “Fiz alguns torneios ao serviço de um clube pequeno da minha cidade e foi nessa altura que o meu treinador me levou a fazer testes pelo Estrela Vermelha. Foi algo simples e a sorte sorriu-me, pois acabei por ficar.” Mas em Belgrado não seria feliz. “Eu estava no Estrela Vermelha e supostamente tinha todas as condições para estar bem, mas existiam coisas que não me agradavam, talvez até decorrentes da situação que o país vivia naquela altura. Não bastava jogar o meu futebol. Então optei por sair. E fui para a III Divisão da Sérvia. Estive seis meses, joguei com regularidade e foi nessa altura que me transferi para a I Divisão da Eslováquia, onde representei o Kosice.”

Na alta roda
Tinha apenas 17 anos, mas esse foi o momento que marcou a sua vida. “Sem dúvida que ali fiz a diferença.  O futebol era mais forte e as condições também. A partir desse momento tudo melhorou para mim e para a minha família”, conta.
Um ano depois, o admirador confesso de Zinedine Zidane já era requisitado. “Na altura, pediram-me pela seleção eslovaca. Como não jogava pela Sérvia, deixei decorrer o processo, mas a UEFA disse que eu tinha de ficar na Eslováquia mais três anos e meio. Foi nessa altura que o selecionador sérvio me chamou e foi dessa forma que eu pude começar a representar o meu país.”
A seleção foi mesmo o trampolim para outros voos. Num jogo do Europeu, ante a Itália, deu nas vistas. “Um representante do Chelsea viu o desafio e fez-me o convite. Só que, nesse mesmo jogo, fraturei o quinto metatarso. Fiquei cinco meses sem jogar e numa equipa como o Chelsea torna-se difícil ganhar um lugar. Quando recuperei, fiz alguns jogos, mas maioritariamente pela equipa de reservas.”
Seguiu-se o empréstimo ao Vitesse, uma realidade totalmente diferente. “Na Holanda, joguei muito, mas acho que não estive ao meu melhor nível. Hoje olho para trás e sinto que não fizemos um bom trabalho, talvez por existirem muitos jogadores novos e por não estarmos compactos.” Mas ao virar da esquina estava o maior passo da carreira…

Festejar à velocidade da Luz
Benfica e Chelsea chegaram a acordo. Matic viria a representar os “encarnados” a partir de 2011/2012. Houve festa na Sérvia. “As pessoas, aqui, não têm a mínima noção do quanto popular o Benfica é nos Balcãs. Quando souberam que eu vinha para o Benfica, os meus amigos e familiares festejaram de forma eufórica. Disseram que eu vinha para um dos melhores clubes do mundo.”
O próprio Matic sabia o passo que estava a dar, mas, tal como tantos outros, espantou-se ao vestir de águia ao peito: “Eu tinha noção da grandeza do Benfica, mas, para ser sincero, ainda assim existiram coisas que me surpreenderam. Os adeptos, por exemplo, são únicos. Estão presentes um pouco por todo o mundo. É incrível a forma como amam o clube. Nunca tinha visto um clube tão popular.”
São conhecidas as palavras aquando da chegada ao Benfica. Muita esperança, felicidade e o elogio a Pablo Aimar. Passado um ano, eis Matic: “O Pablo Aimar tira-me as palavras. Tudo se confirmou. Um dos melhores do mundo. Não é por acaso que é tao respeitado por toda a família do futebol. É um privilégio jogar a seu lado. Mas o Benfica está bem recheado a nível de qualidade individual. Vimos jogar elementos como o Rodrigo ou o Bruno César e ficamos maravilhados. Trata-se de um excelente grupo de trabalho.”

A importância de uma base
O próprio Matic ganhou, aos poucos, o seu espaço. Tornou-se num concorrente de peso a Javi García na posição “seis”, ainda que também possa jogar a “oito”.
Integrou-se num grupo de trabalho que, apesar de ter falhado o objetivo de conquistar o título nacional, brilhou dentro e fora de portas. Por isso, e à imagem do que vê em si próprio, Matic pede paciência em relação ao grupo, pois, como o próprio diz, a evolução está em marcha. “É muito importante que a base da equipa se mantenha, para que possamos dar continuidade ao bom futebol que praticámos na temporada passada. Um aspeto positivo é a continuidade do treinador. Noto que se trata de um trabalho evolutivo, onde todos, em conjunto, bem orientados, iremos atingir patamares muito elevados. Acho que o tempo vai jogar a nosso favor. Temos de estar unidos nos bons e nos maus momentos, tanto quando ganhamos como quando perdemos. É por isso que sinto que tem de existir continuidade neste trabalho. Trata-se de uma das melhores equipas onde já joguei, não só a nível de qualidade mas também de balneário. Formamos um bom grupo.”

Seleção como destino
O final da época foi também a expressão máxima da sua evolução. Chamado à seleção da Sérvia, é cada vez mais encarado como elemento de peso na equipa nacional do seu país. “Para mim é sempre um prazer atuar pela Sérvia, mas não vejo isso como uma forma de pressão. Cabe ao selecionador saber se devo ser chamado ou não. O que quero é que o meu país ganhe. Onde se centra a minha atenção é em trabalhar da melhor forma no meu clube. Depois, claro, se for chamado, é um prazer poder vestir a camisola do meu país.”
E assim se conta a história do menino que, outrora envolvido por um cenário de guerra, vive hoje a felicidade de ser figura num dos maiores clubes europeus, desfrutando de uma Lisboa .tranquilo na qual facilmente destaca a “Baixa e as praias”. Quanto à família, diz, está ”totalmente adaptada a Portugal”.
Ou não fosse verdade a expressão que diz que a felicidade não tem lugar ou destino. Acontece.


Fora de campo
COMER: Como tudo o que me colocarem na mesa. Estou a gostar do bacalhau, aqui em Portugal.
VIAJAR: Madrid, Paris, Lisboa e a minha cidade.
NAVEGAR: Não tenho Facebook, não gosto, mas uso o Skype para falar com a família. E vejo toda a imprensa desportiva europeia.
LER: Gosto da literatura sérvia. Policiais, romances.
OUVIR: Maioritariamente gosto de música sérvia.
JOGAR: Não jogo muito, mas por vezes serve para passar i tempo. Jogo PES.


{Nemanja Matic entre épocas}

“Continuamos a ser a melhor equipa”
Respostas para as perguntas necessárias relativas ao balanco da temporada 2011/2012 e às expectativas para a época que se segue.

Mística (M): Que balanço faz da temporada 2011/2012?
Nemanja Matic (N.M): Não conseguimos o objetivo principal, que era o título nacional… Mas foi uma época que, a nível individual, me correu bem e, se tivermos em conta a capacidade que a equipa mostrou dentro de campo, também posso afirmar que se exibiu a bom nível. Estivemos bem na Champions, onde jogamos muito bem. Fomos infelizes nos quartos-de-final.

M: Foi o seu primeiro ano em Portugal depois de, nas duas etapas da sua carreira, ter passado por Inglaterra e pela Holanda. Que diferenças encontra?
N.M: Se tiver de comparar a Liga portuguesa com os campeonatos inglês e holandês, direi que aqui se joga com mais velocidade que na Premier League. Acho que por isso aprendi e melhorei bastante. Em Portugal existe muita velocidade e uma tremenda componente tática.

M: Deu a ideia de que com o decorrer da época ganhou um maior à-vontade na posição de médio defensivo…
N.M: Os jogadores que vêm para um novo emblema têm de compreender a forma de jogar da equipa e as ideias do treinador. Aos poucos, com o passar do tempo, fui-me apercebendo do que pretendia de mim em prol da equipa. Hoje sei perfeitamente o que quer de mim nesta posição [médio defensivo], o que me facilita imenso a tarefa.

M: Hoje é um melhor jogador?
N.M: Acho que sim. Melhorei muito. O treinador e os companheiros também me ajudaram. Há que notar que, na minha posição, está a jogar no Benfica aquele que é o melhor médio defensivo do futebol português [Javi García]. Tenho aprendido muito com ele.

M: Depreendo que, apesar de concorrente, Javi García tenha sido crucial na sua evolução.
N.M: É como dizia. É talvez o melhor médio defensivo da Liga portuguesa e até por isso a minha missão de tentar alcançar a titularidade é mais complicada. Mas há que notar que a cooperação e aprendizagem com ele tem sido muito benéfica. Hoje sou melhor jogador também devido a Javi García.

M: Voltemos ao coletivo. Grande parte dos adeptos defende que o Benfica foi a equipa que melhor futebol jogou. Sendo assim, o que falhou?
N.M: Fizemos muito boas exibições, mas também tivemos dias menos felizes. A época é longa. É normal que isso aconteça. De qualquer forma, hoje olho para trás e penso que continuamos a ser a melhor equipa portuguesa. Simplesmente faltou-nos sorte em alguns momentos. Depois, e apesar de assumirmos os nossos próprios erros, a verdade é que fomos vítimas de arbitragens, no mínimo desastradas, que nos condicionaram…

M: Está a referir-se a que jogos?
N.M: Iniciou-se em Coimbra, frente à Académica, numa partida em que fomos claramente prejudicados, abrindo-se um ciclo de erros que nos fez perder pontos importantes numa altura crucial.

M: Olhando para o futuro, que perspetivas?
N.M: Temos a base, uma boa equipa, um bom treinador e condições de trabalho soberbas. Somos representantes do clube mais popular, com mais e melhores adeptos. E depois há essa vantagem: temos um conjunto consolidado, que já joga junto há algum tempo. Todos esses fatores levam-me a crer que temos condições para melhorar esta temporada.

Matic em evolução
De Esperança a Certeza
Em crescendo. É desta forma que mais claramente podemos definir a época protagonizada por Nemanja Matic. O jovem, que começou no Estrela Vermelha de Belgrado e que em tempos deu o salto da 3ª Divisão da Sérvia para o principal campeonato da Eslováquia, chegou à Luz no início da temporada, após curtas passagens pelo Chelsea e pelo Vitesse.
Apesar de anteriormente ter atuado na posição “oito”, foi eleito por Jorge Jesus como alternativa a Javi García, que, como se sabe, é um “seis” puro. O crescimento fez-se passo a passo, e se numa fase inicial Matic não foi presença regular na equipa, a segunda metade da época encarregou-se de confirmar o maior peso do internacional sérvio. Eficaz no desarme, dono de um pé esquerdo tremendo e ótima leitura de jogo, o médio de 1,94 m e 23 anos * somou 15 jogos (e um golo na Luz ante o V. Setúbal) na Liga Zon Sagres, tendo estado ainda presente em dez partidas na Champions, a que somou duas na Taça de Portugal e outras tantas na Taça da Liga.



* quando este artigo foi redigido, Matic ainda tinha 23 anos.

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